A tristeza não é patológica - é constitutiva

25 abril, 2025


A tristeza não é patológica — é constitutiva.

Na contemporaneidade, vemos um movimento insidioso e silencioso: a patologização dos afetos. Entre eles, a tristeza talvez seja a mais mal compreendida. Confunde-se com a depressão, é evitada a qualquer custo, e, num esforço de normatizar a existência, acredita-se que a tristeza seja um desvio, um erro, um inimigo a ser eliminado. Mas na realidade psíquica, ela é uma reação necessária, natural e, sobretudo, humana.

A tristeza é uma resposta ao luto, à perda, à frustração. E Freud já dizia: “O luto é o preço que se paga por ter amado.” Em Luto e Melancolia (1917), distingui claramente o luto saudável — onde há dor, sim, mas uma dor que tem função — da melancolia patológica, onde há estagnação, autodepreciação, um supereu cruel que ataca o ego. O que transforma a tristeza em algo adoecido não é sua presença, mas sua recusa. O afeto reprimido, como toda pulsão recalcada, retorna. E quando retorna, o faz de forma disfarçada, desorganizada, adoecida.

Recusar-se a viver a tristeza é um ato contra a própria constituição do sujeito. O afeto reprimido apodrece no inconsciente — e como tudo o que é reprimido, retorna com força redobrada, às vezes como sintoma, às vezes como angústia difusa, ou mesmo em forma de depressão.

O mundo atual, com sua lógica do desempenho e do gozo obrigatório, não tolera a tristeza. Quer o sujeito funcional, produtivo, positivo — sempre sorrindo, sempre resiliente. Mas a vida psíquica não funciona sob as leis do capital. A tristeza, quando autorizada a existir, permite que o sujeito elabore, que transforme a perda em experiência, que reorganize seu mundo interno.

A tarefa do psicanalista é, então, sustentar junto ao paciente essa travessia. Não há desenvolvimento psíquico sem o atravessamento dos afetos negativos — como a raiva, a inveja, o ciúmes, a tristeza. São eles que nos colocam em contato com a nossa finitude, com os limites, com a castração, com a realidade. E é aí, precisamente aí, que se constitui a subjetividade.

Um sujeito que evita o desprazer a qualquer custo é um sujeito que abdica de sua própria consistência. Vive à superfície, fugindo das dores que o moldariam. Fica, como dizemos na clínica, sem estofo. A dor é o solo fértil da transformação — e a tristeza, o começo dessa travessia.


 

A Substância - o filme 2024

3 abril, 2025

A vida sem Substância

A vida pequena de quem vive apenas da própria carne.

O filme traz em primeiro plano uma crítica social de uma sociedade opressora que eleva os padrões estéticos a valores humanos. 

Amor à beleza e não ao humano atrás daquela pele. A submissão da mulher às exigências sociais de juventude eterna e a entrega impensada aos procedimentos estéticos para retardar o envelhecimento.

Essa análise, embora válida, pode ser ampliada para um vértice sob a perspectiva da utilização da beleza como ferramenta de ascensão social e financeira. A beleza é poder! Transformada em produto há séculos, é vendida a peso de ouro. A beleza humana também tem sido objetificada e comercializada.

A personagem Elizabeth Sparkle, fundamentou toda uma existência na aparência, usufruiu de benefícios garantidos pela beleza física. Ao perder seu poder devido o passar do tempo e consequente envelhecimento, nada mais havia restado. Alimentada pela falsa percepção de amor projetado pelo ideal de beleza de um público sedento, viveu uma vida pobre, apesar de toda riqueza e fama.

Ao novamente receber um corpo jovem, ela como Sue, voltou a sua vida anterior de fama e sucesso através da aparência, sem nada mudar, sem nada aprender. Um ciclo de repetição que seria eterno, se o final não fosse trágico e grotesco.

Embora tenhamos evoluído, e isso se deve às novas gerações, a sociedade ainda é opressora e valoriza a beleza e a juventude ao extremo, principalmente a feminina. No entanto, somos também responsáveis por limitar o uso do estético como moeda de troca para ascensão. A submissão à opressão estética, é apresentada no filme como se fosse a única opção, como se a vítima não fosse possível se valer da negativa, da denúncia ao etarismo, da rebeldia, da revolta e do grito como armas de defesa. Esse não é definitivamente o caminho mais fácil, mas é o caminho que preserva a dignidade humana e que propaga o respeito ao outro, sobretudo a mulher.

Denunciar qualquer forma de preconceito é fundamental para que temas como o etarismo venham para o debate. Somente através de denúncias e da subversão de normas ditatoriais é que podemos alcançar a equidade.

É sabido que muitas pessoas, especialmente mulheres, sujeitaram-se a situações humilhantes para alcançar fama, prestígio e dinheiro. A validade do status social e econômico é subjetivo, mas vale a pena pensar em outros caminhos, outras possibilidades de exercer arte sem passar pelo indigno e grotesco.

As cenas finais do filme, mostram a deformação dos dois corpos unificados, a exposição de partes humanas desqualificadas da sua posição de sensualidade, degradadas, pedaços desconexos, avolumados e desesperados por aceitação. A vida de apenas um corpo, sem substância chegando ao fim.

Em contrapartida, a vida pautada na construção de vínculos saudáveis e no crescimento intelectual, moral e ético não se degrada pelo envelhecimento. Esses atributos não se desgastam com o tempo, não se deformam, muito pelo contrário, se fortalecem.

 

Coringa - Delírio a dois (2024)

30 março, 2025

O filme Coringa - Delírio a Dois não tem sido exatamente um sucesso de bilheteria. Frustrou as expectativas do público, e a crítica foi implacável. Arthur Fleck, personagem de Joaquin Phoenix, assim como no primeiro filme, é retratado como uma pessoa com transtornos psíquicos complexos, de natureza psicótica, preso em um estado de decadência. O trauma psíquico é um fator essencial na formação do ego e no comportamento neurótico. Arthur Fleck, desde a infância, foi exposto a traumas profundos: abuso físico e emocional, negligência e um ambiente de extrema carência afetiva. Sua mãe, que deveria ter sido a fonte primária de cuidado e amor, é revelada como uma agente de trauma.

Arthur vive constantemente sob o peso de um trauma não elaborado, o que influencia diretamente a formação de seu ego e sua dificuldade em lidar com a realidade. Em muitos momentos, ele demonstra um comportamento que Freud chamaria de regressivo, retornando à fantasia e ao delírio como uma forma de evitar o sofrimento psíquico real.

No primeiro filme, também vemos Arthur sendo dominado por sentimentos que ele não compreende completamente, o que remete à idéia freudiana do inconsciente, que é uma dimensão da psique que interage com o consciente constantemente, formando um sistema dinâmico e interligado. As risadas inapropriadas de Arthur podem ser interpretadas como uma expressão de impulsos inconscientes e reprimidos. Esses impulsos, mantidos sob repressão durante grande parte da vida de Arthur, começam a emergir de forma mais constante e violenta à medida que o isolamento social e as agressões externas se intensificam. A perda do acesso aos medicamentos representa a derrocada final de sua capacidade de manter uma fachada social.

Arthur começa como alguém que tenta se ajustar, buscando relações humanas e reconhecimento. No entanto, à medida que seu sofrimento psíquico se intensifica, ele passa a agir de forma destrutiva, primeiro contra aqueles que o oprimem diretamente e, eventualmente, contra a sociedade como um todo.

A única assistência que recebia do Estado eram os medicamentos, que o ajudavam a manter um mínimo de estabilidade. Quando o Estado, de forma irresponsável, interrompe o fornecimento desses medicamentos, Arthur entra em colapso psíquico. Isso culmina em uma anarquia moral, em que ele já não vê sentido em obedecer às regras da sociedade.

Essa transformação pode ser interpretada como uma manifestação de frustração profunda diante das expectativas impostas pela sociedade e pelo sistema familiar. A violência de Arthur não é apenas uma tentativa de destruir sua dor interna, mas também uma forma de revolta contra uma sociedade que constantemente o marginaliza.

A transição de Arthur Fleck para o icônico vilão Coringa é a representação de seu aspecto psíquico fragmentado. O Coringa rejeita completamente as normas e expectativas sociais e morais, abraçando a pulsão destrutiva e permitindo que seus impulsos inconscientes reprimidos se manifestem plenamente. Essa ruptura o transforma em um subversivo, desafiando os alicerces da ordem social.

O grande antagonista do primeiro filme é o Estado, cuja negligência no assistencialismo à sua população com transtornos mentais adoece física e mentalmente os indivíduos mais vulneráveis. No segundo filme, as consequências dessa negligência culminam no encarceramento do protagonista.

Um Estado que não acolhe nem trata seus doentes mentais, aliado a um sistema judiciário e policial despreparado para lidar com pacientes psicóticos,  encontra na punição a alternativa para excluir essas pessoas do convívio social. A loucura é estigmatizada, não como um transtorno psíquico, mas como um "transtorno social" que incomoda, suja as ruas, ofende o belo e aniquila a idealização de homogeneidade de uma sociedade alienada.

Pessoas acometidas por transtornos mentais são muitas vezes vistas como intencionalmente más, sendo acusadas de ferir, agredir e ameaçar a segurança coletiva. Essa visão estereotipada ignora a complexidade da saúde mental e reforça o ciclo de exclusão. Qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência (com uma dose de ironia).

Tenho lido muitas críticas sobre as inserções musicais no filme, apontando que elas não servem à narrativa e que quebram o ritmo e a fluidez da história. Alguns críticos também mencionaram a falta de uma estrutura narrativa coesa e de uma visão unificada, classificando a obra como uma "abordagem fragmentada da narrativa".

Concordo parcialmente com essas observações, mas proponho uma perspectiva diferente: a abordagem fragmentada é, na verdade, absolutamente proposital. Isso se conecta diretamente ao estado psíquico do protagonista.

Quando um paciente está em surto psicótico, sua experiência interna é caracterizada por fragmentação. O surto representa uma cisão do Eu, um mecanismo de defesa extremo que permite lidar com uma realidade percebida como insuportável para a estrutura psíquica daquele indivíduo. Dessa forma, a narrativa do filme reflete e comunica, em seu próprio formato, a desorganização e a ruptura psíquica vividas pelo personagem. Essa escolha estilística, embora desafiadora, reforça a imersão na mente fragmentada de Arthur, criando um paralelo entre forma e conteúdo.

O filme aborda a vida de um psicótico sem tratamento, exposto a todas as adversidades de um mundo neoliberal, onde o Estado se abstém de suas responsabilidades com a população. Diferentemente de pacientes com doenças físicas, o indivíduo com transtorno mental não consegue pedir ajuda, buscar tratamento ou narrar seus sintomas, especialmente quando está em surto. O abandono do Estado a esses pacientes é a maior expressão de irresponsabilidade e crueldade.

Tanto o primeiro quanto o segundo filme funcionam como críticas sociais potentes ao Estado omisso, que abandona as pessoas com transtornos mentais a condições subumanas.

Ser psicótico não é ser mau. A pessoa em surto psicótico pode cometer atos violentos devido a alucinações e delírios, mas essa agressão não é dirigida a pessoas reais. Ela é, na verdade, uma defesa contra os "monstros" que atacam o sujeito em suas alucinações, um reflexo da luta interna do paciente em face da realidade distorcida que ele experimenta.

A aproximação entre psicótico e maldade é uma visão comum, frequentemente utilizada como uma forma simplificada de "resolver" a questão. Se as pessoas psicóticas são reconhecidas como doentes, o Estado se vê obrigado a investir em tratamentos de saúde adequados. No entanto, se são tratadas como "más", "drogadas" ou "perigosas", a solução mais simples e barata se torna o encarceramento. Dessa forma, um problema altamente complexo é reduzido a uma resposta simples e superficial.

Para um esclarecimento mais profundo, acredito que vale a pena destacar as principais diferenças entre as três estruturas psíquicas: neurótico, psicótico e perverso. Essas estruturas não devem ser vistas apenas como patologias, mas como formas distintas de existência no mundo, cada uma com seus próprios mecanismos de defesa e maneiras de lidar com a realidade.

Freud entendia que o desenvolvimento psíquico ocorre em fases, cada uma com seus desafios e traumas. Lembramos que Arthur Fleck sofreu traumas agudos na infância. Dependendo de como esses desafios são resolvidos, a pessoa pode organizar seu psiquismo de maneira neurótica, psicótica ou perversa. É uma questão de como o indivíduo lida com a realidade externa, com o desejo e com a forma que respondemos às proibições e normas sociais.

O Neurótico (a grande maioria de nós se enquadra nesta estrutura psíquica). É aquele que vive sob o domínio de conflitos internos entre seus desejos inconscientes e as proibições da realidade externa ou moral. O neurótico reconhece a realidade, mas sofre com ela, pois está constantemente em luta para reprimir desejos que considera inaceitáveis. Freud viu a neurose como algo "normalizado" no contexto da civilização. Todos carregam, em maior ou menor grau, traços neuróticos, pois viver em sociedade exige repressão de certos impulsos.

No Psicótico, caso no personagem Arthur Flecko conflito é mais radical: há uma ruptura com a realidade. Ele não consegue integrar o mundo externo de maneira estável, e sua psique cria um universo próprio, que muitas vezes substitui o real. Para Freud, a psicose é mais rara e mais profunda que a neurose, pois envolve a perda do princípio de realidade.

A ruptura com a realidade expulsa elementos essenciais do psiquismo, como a Lei do Pai (a lei simbólica que organiza os limites e as proibições). Isso gera uma desorganização interna que se manifesta em delírios ou alucinações.

O Perverso não vive o mesmo conflito do neurótico, nem rompe com a realidade como o psicótico. Em vez disso, o perverso contesta as normas sociais e morais. Contudo, ele sabe que essas normas existem; simplesmente escolhe desafiá-las. Ele não rompe com a realidade, mas sim com a ética e a moral convencionais. Para o perverso, o outro é frequentemente objetificado, reduzido a um meio de realização do próprio prazer. Possivelmente, você já cruzou com algum desses pelo caminho.

O total desamparo das pessoas com transtornos mentais pelos sistemas assistencialistas do Estado e sua subjugação à tirania, controle e opressão do judiciário, reduzindo a doença à condição de crime, é o ponto central do filme.

Vou começar a fazer alguns contrapontos às críticas que li, começando por esta:

“Que musical é esse? Sério, não parece um musical, não parece um filme pensado para ser literalmente um musical, parece que nos momentos que começam a se construir algo, a existir uma tensão, do nada surge uma música, que infelizmente quebra todo o clima dos principais momentos e tramas do filme.”

A crítica diz que: “Parece que, nos momentos em que começa a se construir algo, a existir uma tensão, do nada surge uma música…”

O momento em que começa a existir uma tensão é quando a psique do personagem entra em fragmentação, justamente por não conseguir tolerar a dor emocional. Lembramos que a estrutura psíquica do psicótico é frágil e se utiliza de mecanismos de defesa, como a cisão, para se afastar de uma realidade insuportável. Todd Phillips recorre ao musical para representar esse afastamento da realidade; o personagem cria uma realidade particular, fantasiosa e mais amena, para sobrepor à dura e implacável realidade da cena.

Essa técnica, utilizada pelo cineasta, gerou no público a sensação de desconexão entre as cenas e a inserção dos musicais. Mas é exatamente essa a dinâmica da cisão psíquica. Há uma quebra, uma clivagem que transpõe o indivíduo para outra realidade, repleta de delírios e alucinações, que no filme é retratada por meio dos musicais.

Gostaria de contrapor a mais essa crítica: 

“Phillips se esforça para que o espectador crie uma certa empatia pelo coringa, tentando mostrar um lado humano do vilão, o que não convence muito, já que o contraponto da visão do personagem (obviamente um psicopata de primeira) é fraco, são sempre pessoas ruins, egoístas, policiais corruptos, profissionais medianos e personagens sem carisma.”

Não vejo o personagem como um psicopata, que corresponderia a um perfil perverso conforme as características já descritas, mas sim como um psicótico com surtos frequentes e sem acesso a tratamento adequado. A intenção de Todd Phillips é claramente despertar no público a compaixão por aqueles que enfrentam os transtornos mentais sozinhos, desamparados tanto pela família quanto pela sociedade.

O verdadeiro vilão da história é o Estado, que não apenas negligencia sua responsabilidade, mas também explora a fragilidade dos indivíduos, reduzindo-os a uma condição de absoluta indignidade. Arthur Fleck é, antes de tudo, uma vítima dessa omissão estatal.

E mais essa crítica para analisar sob outra perspectiva:  “A direção optou por um Coringa arrependido, apagado, demasiadamente desanimado e depressivo. Tudo isso entrecortado por cenas chatas de música e dança. Definitivamente decepcionante.”

Arthur Fleck é medicado, muito provavelmente, com tranquilizantes inadequados ao seu quadro. O objetivo desses medicamentos parece ser apenas a sedação, em vez de regular o estado mental para promover a recuperação e a autonomia do paciente.

O diagnóstico preciso de doenças mentais exige o empenho de profissionais de saúde responsáveis, competentes e verdadeiramente comprometidos com a melhora do paciente. No entanto, essa dedicação não parece estar presente nos profissionais que cuidam dos doentes retratados no filme.

Todd Phillips e Scott Silver propõem uma experiência cinematográfica construída, no mínimo, a partir de três perspectivas: a de uma pessoa em estado de grande perturbação mental, a de um Estado negligente e opressor e a de uma população alienada e manipulada pela mídia.

Podemos imaginar uma versão final mais esperançosa do filme, onde Arthur vive em uma sociedade igualitária, na qual o Estado acolhe as singularidades de cada indivíduo e oferece assistência social e médica. Nesse contexto, pessoas com transtornos mentais teriam o suporte necessário para canalizar seus impulsos de forma adequada.

O filme Coringa proporciona uma reflexão profunda sobre a complexidade psíquica e se estabelece como um modelo para discussões políticas e sociais, especialmente no que tange às estratégias para enfrentar os desafios das doenças mentais.

Escrito por: Rode Ziembick - Psicanalista

 

A Importância de nomear emoções e sentimentos: Uma perspectiva psicanalítica

30 março, 2025

A Importância de nomear emoções e sentimentos: Uma perspectiva psicanalítica

Nomear emoções e sentimentos desempenha um papel essencial na saúde mental e no bem-estar emocional. Freud acreditava que a mente inconsciente guarda memórias, desejos e sentimentos reprimidos que influenciam o comportamento consciente. Ao nomear emoções, trazemos esses sentimentos reprimidos à tona, permitindo compreendê-los e enfrentá-los de maneira saudável.

Ao identificar uma emoção como tristeza, raiva ou ansiedade, o indivíduo começa a entender a origem e a natureza desses sentimentos, promovendo uma maior compreensão e alívio emocional. Essa prática facilita a expressão e comunicação dos sentimentos com os outros. Freud destacou a importância da comunicação para resolver conflitos internos e interpessoais. Quando articulamos nossas emoções, podemos buscar apoio, compreensão e empatia, essenciais para relacionamentos saudáveis e para o processo terapêutico.

Nomear emoções é fundamental para a saúde mental, pois facilita a conscientização, expressão, comunicação e integração psíquica. Ao trazer à consciência os conteúdos reprimidos da mente inconsciente, alcançamos uma maior compreensão de nós mesmos e promovemos a resolução de conflitos internos, levando a uma vida emocional mais equilibrada e saudável.

A definição das palavras é crucial para o reconhecimento, compreensão e desenvolvimento do repertório comportamental associado a qualquer fenômeno, seja individual ou coletivo. No entanto, ao tratar de sentimentos e emoções, frequentemente discutimos esses assuntos sem definições precisas, devido à dificuldade em delimitá-los claramente. Muitas vezes, ouvimos pessoas usando a palavra "ansiedade" para qualquer afeto estimulante que contenha alguma excitação ou agitação.

A pobreza do vocabulário emocional é mais preocupante do que uma simples carência de palavras. Nomear um estado de ânimo de excitação e estímulo como "ansiedade" altera seu significado e a forma como nos relacionamos com o sentimento. É muito diferente pensar que estamos animados com uma reunião em que teremos a oportunidade de expor nosso trabalho, em vez de nos sentirmos ansiosos pela mesma reunião. O primeiro estado nos coloca em uma posição de vantagem e oportunidade, enquanto o segundo nos coloca em uma posição de medo e perseguição.

A conversão das emoções em sentimentos passa pela linguagem. Quanto maior for o nosso dicionário emocional, mais nos aproximamos das representações linguísticas daquilo que nos afeta. Saber a diferença entre "ansioso" e "animado", "inveja" e "cobiça", "arrependimento" e "culpa", "frustração" e "mágoa" é fundamental para o manejo dos sentimentos. Ampliar o vocabulário emocional nos ajuda a compreender as nuances dos nossos sentimentos. Somos seres complexos e ambíguos, e nossos sentimentos não se limitam a estar feliz, triste, ansioso ou tranquilo.

Cada pessoa é afetada de forma muito particular pelos eventos da vida. O que mobiliza uma pessoa pode passar despercebido por outra. Entretanto, saber o que estamos sentindo nos ajuda a elaborar as emoções e sentimentos de maneira mais congruente. Nomear nossas emoções busca reconhecimento e validação, elementos cruciais para a formação de uma identidade sólida e para o desenvolvimento de relações interpessoais significativas. Esse processo é vital para o nosso crescimento pessoal e para a construção de uma narrativa coerente e integrada de nossas vidas.

Nomear emoções é uma forma de mediar experiências intensas e muitas vezes avassaladoras, trazendo-as para um campo onde podem ser manejadas e compreendidas de maneira mais eficaz. A nomeação ajuda a reduzir o impacto dessas emoções e a promover um senso de controle e entendimento. Isso não só dá significado às nossas emoções, mas também nos permite comunicar e relacionar nossas experiências com os outros. Inserir essas emoções na cadeia de significantes proporciona estrutura e contexto que enriquecem nossa compreensão de nós mesmos.

No ambiente profissional, a habilidade de nomear emoções pode melhorar a comunicação, promover um ambiente de trabalho mais saudável e aumentar a produtividade. Em nossa vida pessoal, isso nos permite lidar melhor com desafios emocionais, fortalecer nossas relações e promover o autoconhecimento. Nomear nossas emoções é uma prática poderosa e transformadora. A linguagem é uma ferramenta essencial para a saúde mental e o bem-estar. Ao articular nossas emoções, não apenas damos sentido a nossas experiências, mas também criamos um espaço para crescimento pessoal e conexão com os outros.

A Psicanálise é um dispositivo que nos ajuda a nomear e ressignificar emoções e sentimentos.

Escrito por: Rode Ziembick - Psicanalista

 

Ódio como produto cultural

30 março, 2025

Quanto mais eu sei, mais descubro o quanto ainda não sei. Diferente do ignorante, que pouco ou nada sabe e acredita em soluções mágicas e verdades absolutas.

Sustentar o "não saber" é uma qualidade daqueles que confiam em seus próprios recursos internos. O impacto do desconhecido sobre o medo, a angústia e o ódio é maior do que se imagina. Enquanto o objeto do medo é conhecido, o sujeito consegue lidar e criar fantasias para se proteger e defender. Porém, ao perder o contato com o objeto causador do medo, este se converte em angústia. Quando a angústia é fonte de conversão do medo, ela é reformulada e se transforma em ódio.

Todos os afetos, tanto os positivos quanto os negativos são importantes. Vivemos em uma sociedade que evita a todo custo entrar em contato com os afetos negativos. Medicar-se ou  alienar-se são opções bem tentadoras para evitar o confronto com esses afetos. No entanto, outra forma de reagir ao medo, quando convertido em angústia, é através do ódio. Alguns só conseguem se proteger daquilo que conhecem; nesse caso o medo é gerenciável. Quando o mundo se torna complexo demais e os objetos que o assustam são diversos, instaura-se o caos na psique.

Tolerar o medo e a angústia possibilita a expansão mental. Sustentar o medo e a angústia  favorece a criação do mundo, com novas ferramentas, engenharias, tecnologias, sistemas matemáticos e ciências para proteger as pessoas contra seus medos e angústias mais profundas. A verdadeira proteção é aquela que resiste ao nosso senso crítico. A angústia é fundamental para o processo de conhecimento,  para se gostar de saber, de descobrir novos métodos, novos mundos e novas possibilidades de existência.

Alguns, aprendem a transformar o medo em ódio, sempre que não se sabem com o que estão lidando; perdem o controle quando o objeto do medo perde sua forma. O sistema interno de medo entra em colapso. Calcular e agir contra o medo deixa de ser eficaz; o sujeito vocifera, e parte para o ataque por desconhecer o cenário, o contexto e a gramática das relações. Isso é chamado de ação inespecífica, um ato psíquico não especificado.

Quando o indivíduo, possuído pelo ódio, ataca o outro, o resultado é sempre catastrófico. A atitude errática de atacar quem não se conhece e sofrer o contra-ataque faz com que o ódio retorne ao sujeito e a culpa e o super eu entra em ação.

Por exemplo, em uma situação social, com salários menores, excesso de trabalho, perda de emprego, crises climáticas e um futuro incerto, os objetos de medo tornam-se difusos, ambíguos ou ocultos. 

É necessário um grande “continente”- ou seja, uma capacidade ampliada de lidar com o aleatório, o desconhecido, o instável, o inconstante e vacilante.

O mundo atual exige uma expansão desse "continente" para que o indivíduo não se torne presa fácil do recrutamento do ódio.

Diante do duro conflito interno para  abertura e espaço mental capaz de acomodar um mundo instável em constante mudança, surge alguém aparelhado pelas redes sociais,  oferecendo uma solução fácil e indolor: agora, não será mais necessário conhecer a lógica social, entender sobre os impactos do neoliberalismo, as questões de gênero, a crise climáticas, a luta racial, o etarismo ou ter consciência de classe. Você não precisa exercitar a inteligência, pensar é muito desgastante; te oferecemos o “kit ódio”. Como ele, você se protegerá de todas as inconveniências de lidar com as diferenças e de sustentar a angústia. O kit ódio é tão eficaz que você vai amar odiar, querendo sentir cada vez mais ódio. Assim, não haverá mais política, discussão de ideias, espaço para o contraditório, para o pensamento divergente e muito menos precisará conviver com as diferenças. Vamos viver o prazer do ódio, não importa contra quem; basta escolher os culpados de sempre, eleja os que quiser. O importante é desqualificá-los e evitar a angústia. E o melhor de tudo é que você poderá faze todos os ataques de ódio de forma anônima, através das plataformas digitais!

E assim, uma multidão de pessoas são abduzidas pelo ódio. O ódio engaja; os discursos de ódio são monetizados nas redes sociais, são muito bem pagos. Toda vez que um afeto remunerar alto, ele tende a se tornar hegemônico e a se converter em uma pressuposição geral do contrato social, isto é, em um sentimento. 

O ódio generaliza, desumaniza,  tira a individualidade e coloca todos na mesma categoria, sem considerar as diferenças e as dificuldades individuais. O odioso é um generalista, que pensa no atacado.

Além disso, o ódio é uma moeda de prazer interno, que gera uma recompensa emocional. O exercício do ódio torna-se uma dependência: quanto mais alguém odeia, mais deseja odiar e narrar seu ódio.

O medo, ao contrário, individualiza e nomeia; pode ser um caminho para a gestão do ódio. Desconstruir discursos de ódio através da individualização coloca o odioso frente ao olhar do outro. O impacto desse olhar pode oferecer um enquadre, devolvendo-o ao medo e permitindo que ele repense sua posição no mundo.

Escrito por: Rode Ziembick - Psicanalista